RICARDO ALEXANDRE RODRIGUES GARCIA
(orientador)
RESUMO: Este artigo foi desenvolvido para demonstrar a mudança no modo de interpretar as leis civis, em consonância com a Constituição e não de forma separada, trazendo a visão de um Direito Civil mais humanizado, que não apenas tem como foco o patrimônio das pessoas no direito contratual, mas também os direitos existenciais. O objetivo é compreender como os princípios constitucionais de solidariedade e igualdade adentram no Direito Civil, bem como, demonstrar o impacto que isso causa na força obrigatória dos contratos, levando à mitigação de cláusulas. Para isso, utilizou-se a pesquisa descritiva a partir de revisões bibliográficas, além de buscar em decisões judiciais de primeiro grau, jurisprudências e súmulas, como acontece essa relação principiológica na prática. Os resultados obtidos demonstraram que a liberdade contratual sofre restrição quando presente situações de extrema vantagem para um dos contratantes com onerosidade excessiva para a outra pessoa, o que prejudica a dignidade dela, consubstanciando a tese de substituição da autonomia da vontade pela autonomia privada. A análise em questão permitiu concluir que a mitigação do pacta sunt servanda deu espaço ao Direito Civil contemporâneo, o qual sofre influxos da Constituição Federal para garantir a dignidade de todas as pessoas, evitando opressão da parte mais forte para a considerada mais vulnerável na relação contratual.
Palavras-chave: Igualdade. Solidariedade. Direito Civil. Pacta sunt servanda.
ABSTRACT: This article was developed to demonstrate the change in the way of interpreting civil laws, in line with the constitution and not separately, bringing the vision of a more humanized Civil Law, which not only focuses on people's assets in contractual law, but also existential rights. The objective is to understand how the constitutional principles of solidarity and equality enter Civil Law, as well as to demonstrate the impact that this causes on the binding force of contracts, leading to the mitigation of clauses. For this, descriptive research was used from bibliographical reviews, in addition to seeking first-degree court decisions, jurisprudence and precedents, how this principled relationship happens in practice. The results showed that contractual freedom is restricted when there are situations of extreme advantage for one of the contracting parties with excessive cost for the other person, which undermines their dignity, consolidating the thesis of replacing the autonomy of the will by private autonomy. The analysis in question led to the conclusion that the mitigation of the pacta sunt servanda gave way to contemporary Civil Law, which is influenced by the Federal Constitution to guarantee the dignity of all people, avoiding oppression from the strongest party to the one considered most vulnerable in the contractual relationship.
Keywords: Equality. Solidarity. Civil Right. Pacta sunt servanda.
1.INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda sobre a importância que a Constituição Federal tem na contemporaneidade no que diz respeito às relações individuais, a maneira como ela passa a influir na vida das pessoas, com ênfase na relação contratual. O objetivo é compreender como os princípios constitucionais de solidariedade e igualdade adentram no Direito Civil, bem como, demonstrar o impacto que isso causa na força obrigatória dos contratos, levando à mitigação de cláusulas.
Com a relativização do pacta sunt servanda nas normas atuais de Direito Civil, muito se discute sobre o dever obrigacional entre as partes contratantes, uma vez que que esse princípio era fundamental para forçar o cumprimento das cláusulas contratuais estabelecidas, com base na vontade das partes. Outra questão a se observar é a da liberdade contratual, a qual permitia a realização de qualquer tipo de negócio, sobre pressuposto de autonomia da vontade, e que nas normas civis atuais deve estar de acordo com a função social do contrato, ou seja, mesmo que se estabeleçam acordos não defesos em lei, eles devem respeitar tal função. Dito isso, surge o seguinte problema, “será que com o fim da autonomia da vontade e a mitigação do pacta sunt servanda, anula-se o dever obrigacional?”.
É importante analisar a relação principiológica constitucional na esfera civil para demonstrar aos indivíduos, pessoas comuns, o que é direito seu, frente a negociações tanto com empresas, quanto nas relações interpessoais, a fim de evitar abusos e opressão de vontade da parte mais vulnerável economicamente nas relações contratuais.
No estudo, é feito inicialmente uma abordagem sobre a evolução histórica do Estado brasileiro, no que se refere ao pensamento individualista até chegar à contemporaneidade, onde se busca cumprir os objetivos do Estado Democrático de Direito, diminuindo desigualdades e garantindo a todos um tratamento com respeito à dignidade tanto nas relações verticais quanto horizontais. Após, discorre-se sobre como foi o processo de trazer os princípios constitucionais para a esfera civil, destacando decisões e jurisprudências.
Em seguida, versa-se sobre a autonomia privada, em substituição da autonomia da vontade, e a função social do contrato, com a finalidade de entender, como ocorre a mitigação do pacta sunt servanda, examinando a liberdade contratual e o papel da vontade do indivíduo na estipulação de cláusulas contratuais, para então se chegar à guisa de conclusão.
Cumpre ressaltar que foi utilizada a metodologia descritiva, buscando bibliografia e jurisprudência a respeito do tema em questão.
2. EVOLUÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
O primeiro código civil brasileiro surgiu em 1916 e foi escrito por Clóvis Beviláqua, a luz dos ideais do liberalismo econômico, influenciado pelo “code civil” napoleônico, tinha como característica fundamental a defesa da liberdade e propriedade burguesa, não havendo interferência estatal. Ele possuía “um papel de estatuto único e monopolizador das relações privadas, não sofrendo ingerência do Poder Público e a ele contrapondo-se, aspirando uma completude que, em verdade, era impossível” (TARTUCE, p.75, 2007), e perdurou por todo o século XX, sofrendo algumas alterações de acordo com o tipo de governo.
Salienta-se que no período de criação daquele instrumento jurídico a sociedade era majoritariamente rural, com uma elite agro exportadora preponderante no poder estatal, mas havia também a burguesia industrial que começava a ascender no período da primeira guerra mundial em virtude de maiores dificuldades à importação.
Relevante enunciar que na primeira república as políticas eram voltadas a manutenção das classes dominantes, o direito a voto, por exemplo, era restrito aos homens alfabetizados, excluindo a maior parte da população brasileira da época e tinha-se um sistema de curral eleitoral em que os coronéis controlavam os votos dos seus trabalhadores, já que era aberto, assim, as políticas não representavam a massa populacional mais pobre, o que feria a dignidade dessas pessoas e pôde ser percebido nas relações contratuais.
Em meio a isso, precisa-se notar que o país abolira a escravidão alguns anos antes e não houve muitas intervenções estatais que garantissem condições dignas de vida a essa nova massa populacional livre. Convém destacar ainda, que a política liberal daquele código civil não promovia meios diretos para que houvesse a igualdade na formação dos contratos, fase de estipulação do conteúdo, a liberdade do indivíduo não era colocada junto a interesses da coletividade, como o bem estar de todos, o que acabava gerando um individualismo, de acordo com Santos (2003, apud LEAL; BORGES, 2017, p.24).
As cláusulas contratuais eram livres de interferência do Estado, dessa forma as partes poderiam estabelecer qualquer tipo de acordo, desde que não acometidos de vícios de consentimento, o que possibilitava a onerosidade excessiva de uma das partes, visto que não havia nenhum artigo que impunha a boa-fé objetiva, ficando ela intrínseca ao pensamento das partes. Como estava em vigor a plena autonomia da vontade, uma vez firmado o contrato, ele tornava lei entre as partes, ou seja, “os cidadãos estavam à mercê do desequilíbrio contratual nas relações travadas com agentes economicamente mais fortes, bem como à cega submissão ao princípio do pacta sunt servanda” (BALDISSERA, JUNIOR e SILVA, 2020, p. 208).
Todavia, no decorrer do tempo ficou nítido o avanço das desigualdades sociais neste formato de legislação, exemplo disso eram situações em que a pessoa precisava de um empréstimo por necessidades emergenciais e a outra parte lhe fornecia, mas com juros demasiadamente altos, e assim tinha que fazer contrato desfavorável por não haver outra opção. Desse modo, o Estado liberal acabou por gerar opressão do mais forte ao mais fraco. “A eticidade do código estaria baseada na igualdade formal, desconsiderando as reais condições dos indivíduos concretos, que eram indiferentes para ordem jurídica liberal” (LEAL; BORGES, 2017, p. 24).
Com a ascensão do militarismo, já na segunda metade do século XX, foi estabelecido um Estado em que não havia participação política da população e não realizou alterações no Código Civil relacionadas ao contrato, que proporcionasse maior igualdade entre as partes. Esse formato de governo, pelo contrário, oprimia movimentos de oposição ao sistema político estatal, há exemplos de pessoas perseguidas, torturadas e até mortas por discordarem daquele regime, segundo consta em reportagem do jornal O Estado de São Paulo (2014, on-line). Tudo isso levou a várias manifestações populares que visavam o retorno da participação política, como as “diretas já”, que acabaram culminando no fim daquela maneira de governar, e em 1988 houve a promulgação de uma nova constituição, a chamada “cidadã”, ela teve por base os direitos fundamentais e humanos, como a dignidade das pessoas e a igualdade, estabelecendo um formato de Estado dirigente, o qual tem por objetivo garantir a solidariedade, justiça, diminuição de desigualdades sociais e regionais e o bem estar de todos.
A partir de então, surgiu o Estado democrático de direito, o qual para alguns doutrinadores não é apenas uma junção do social com o liberal, mas um novo formato na medida em que possui um componente revolucionário de transformação do “status quo” (SILVA, 1999, p.123 apud MORAES, 2014, p.277) e para outros é, mas com alguns desafios, conforme preceitua Ricardo Quartim de Moraes (2014, p.278):
“[...]o grande desafio do Estado Democrático de Direito seria impedir que as suas funções sociais se transformem em funções de dominação, em vista do poderio que atribuem à máquina estatal. Reprimidas tais funções de dominação estatal, teríamos no Estado Democrático de Direito tanto a liberdade negativa como a liberdade positiva, marcada pela extensão dos direitos políticos, sociais, econômicos e culturais.”
Independente da forma de se conceituar o Estado Democrático de Direito, se junção do social com o liberal ou sendo um novo formato, o que precisa ser esclarecido é que Constituição Federal de 1988 trouxe empecilhos à soberania do Código Civil de 1916 como controlador das relações privadas, mitigando suas disposições e efeitos em consonância com a função social e os princípios e garantias fundamentais, conforme Baldissera, Junior e Silva (2020).
Assim, foi necessário atualizar as disposições do antigo Código Civil, culminando no modelo que foi publicado no ano de 2002. Mas é preciso esclarecer que, de acordo com Miguel Reale (2001, apud TARTUCE, 2007), a nova codificação privada emergiu por meio de muitas transformações sociais no decorrer do tempo, não apenas pelo advento da magna carta brasileira.
Dito isso, este presente trabalho apresentará nos capítulos posteriores a proximidade dos princípios constitucionais de igualdade e solidariedade ao Direito Civil, com ênfase na relação contratual, a partir da nova tendência doutrinária de substituição da autonomia da vontade pela autonomia privada, que levaram à relativização do pacta sunt servanda.
3. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
No contexto de democracia contemporânea, em que a dignidade humana foi alçada como princípio máximo da constituição, cabe ao intérprete da lei garantir o cumprimento dos princípios constitucionais no Direito Civil, a fim de assegurar os objetivos do Estado. Isso ocorre porque houve uma mudança no modo de observar a dicotomia existente no passado, em que direito público e privado não se misturavam, devido a tendência de personalização do Direito Civil que leva à valorização da pessoa humana em detrimento do patrimônio, segundo Flávio Tartuce (2007).
Para Luís Roberto Barroso (2020, p.86), “em um Estado democrático de direito, não subsiste a dualidade cunhada pelo liberalismo, contrapondo Estado e sociedade. O Estado é formado pela sociedade e deve perseguir os valores que ela aponta.” A respeito disso, observa-se o Recurso Extraordinário nº 201.819, julgado em 2005, pelo Supremo Tribunal Federal, que tem por ementa:
SOCIEDADE SEM FIS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DO SÓCIO SEM GARANTIA DE AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO (STF, 2005, on-line).
Na decisão, houve a aplicação do princípio do contraditório e ampla defesa, estabelecendo a interferência da constituição federal na esfera privada. Tal julgamento está entre os primeiros que possibilitaram a aplicação dos direitos fundamentais como de eficácia horizontal, segundo Flávio Tartuce (2007). Destaca-se parte do voto do ex ministro Joaquim Barbosa:
[...] os direitos fundamentais têm, sim, aplicabilidade no âmbito das relações privadas [...] o fato é que, entre nós, a aplicabilidade dos direitos fundamentais na esfera privada é consequência de diversos fatores, muitos deles observáveis nas práticas jurídicas contemporâneas, inclusive entre nós. O primeiro deles, o paulatino rompimento de barreiras que separavam até o século XIX o direito público e o direito privado. Por outro lado, um fenômeno facilmente observável em sistemas jurídicos dotados de jurisdição constitucional – a chamada ‘constitucionalização do direito privado’, mais especificamente do direito civil. Noutras palavras, as relações privadas, aquelas que há até bem pouco tempo se regiam exclusivamente pelo direito civil, hoje sofrem influxos de princípios de direito público, emanados predominantemente das decisões proferidas pelos órgãos de jurisdição constitucional. [...] (STF, 2005, on-line).
Nesse sentido, consoante Daniel Sarmento (2004, p. 223 apud TARTUCE, 2007, p. 81-82) verifica-se que os direitos humanos fundamentais possuem eficácia horizontal, isto é, eles irradiam da constituição para as relações entre os particulares e todo ordenamento jurídico, o doutrinador ressalta que essa visão “é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa”.
Tal mudança na maneira de interpretar o código civil em consonância com a constituição é chamada pela doutrina de Direito Civil Constitucional (TARTUCE, 2022).
Diferente de como acontecia no passado em que a declaração de direitos agregada à constituição era vista como princípios morais sem valor jurídico, as normas que protegem a pessoa, não são tidas apenas contra o legislador e o Estado, segundo Barroso (2020). Isso é confirmado no recurso acima citado, conforme dispôs o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, em seu voto: “os direitos fundamentais, imperativo indeclinável de todas as democracias, não mais se concebem como limitações impostas única e exclusivamente ao Estado” (STF, 2005, on-line).
4. AUTONOMIA PRIVADA
No que se refere à vontade nos contratos, ela é um elemento fundamental, pois é o que distingue os seres humanos dos demais seres vivos, ela é o instrumento que diferencia o ato jurídico em sentido estrito dos demais fatos (advindos da natureza). Essa vontade parte da pessoa, da mesma forma que a liberdade, a qual na formação de um negócio jurídico pode ser interpretada de duas maneiras, a de contratar, que diz respeito às pessoas envolvidas no contrato, com quem se pode estabelecer acordos formais, e a liberdade contratual, que se refere ao direito de estipular cláusulas livremente. No encontro dessas duas, surge o conceito de autonomia privada, a forma das pessoas buscarem a realização dos seus interesses em negócios jurídicos, desde que com respeito à dignidade das demais, que ficarão sujeitas aos seus efeitos, inclusive terceiros, pois há restrições de ordem pública a esse princípio contratual, o qual sucedeu a autonomia da vontade.
Em relação ao significado de autonomia da vontade, cita-se a definição de Maira Cauhi Wanderley (2014, p. [não paginado]):
A autonomia da vontade significa que a obrigação contratual tem uma única fonte: a vontade das partes. A vontade humana é o núcleo, a fonte e a legitimação da relação jurídica, e não a lei. Desta forma, a força que obriga as partes a cumprirem o contrato encontra seu fundamento na vontade livremente estipulada no instrumento jurídico, cabendo à lei apenas assegurar os meios que levem ao cumprimento da obrigação, possuindo, portanto, posição supletiva.
É plausível dizer que o formato liberal do código civil de 1916 era suscetível de injustiças sociais, porque não se levava em consideração a situação social em que os indivíduos estavam no momento do negócio jurídico, pelo contrário, presava-se pela igualdade estritamente formal, visto que “na visão tradicional, o juiz não deve modificar nem adequar à equidade a vontade das partes, pelo contrário, deve respeitá-la e fazer com que as partes cumpram o acordado” (WANDERLEY, 2014, p. [não paginado]).
Para alguns doutrinadores, a autonomia privada é tida como sinônimo de autonomia da vontade, entretanto essa é uma ideia questionável, já que foi por causa da substituição do modelo antigo de liberalismo econômico que começou a se falar nesse novo princípio, tendo como base a função social. De acordo com Flávio Tartuce (2022, p.59): “esse princípio traz limitações claras, principalmente relacionadas com a formação e reconhecimento da validade dos negócios jurídicos. A eficácia social pode ser apontada como uma dessas limitações”.
Em relação aos limites da autonomia privada, o respeito à dignidade de ambos os contratantes é fundamental para se alcançar os objetivos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Sobre isso, coloca-se em voga palavras do doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet (2019, p. 127): “quando da tentativa de construção jurídica de dignidade, a liberdade e os direitos de liberdade em geral não podem resultar em uma relação de dominação, no sentido da subjugação de uma pessoa pela outra”. Além disso, observa-se o artigo 29, inciso II da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, que aduz:
No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Nesse sentido, expõe-se o enunciado 23 da I Jornada de Direito Civil: “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana” (2012, p. 19). Assim, a liberdade contratual sob égide da autonomia privada pode sofrer restrições quando presentes direitos humanos fundamentais, a exemplo da igualdade.
É relevante colocar em discussão que a vontade, nas regras atuais de direito civil, não é o único fator que determina a formação do contrato, uma vez que há cláusulas gerais que precisam ser respeitadas na concretização, exemplo disso é a invalidade de normas contratuais abusivas.
Outra questão é que a lei 10406/2002 garante que o mais forte na relação contratual não dite regras sobre o mais fraco, por meio de alguns artigos, como o 187, o qual preceitua “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002), reiterando a presença de outros elementos na determinação do contrato.
Logo, surge a dúvida no caso de a autonomia privada ser apenas um modelo de relativização da autonomia da vontade, todavia é necessário destacar que em uma sociedade onde se tornou comum os contratos patrimoniais de adesão se resumirem a uma resposta de “sim” ou “não”, a vontade assume um papel secundário, uma vez que não há discussão na formação das cláusulas. Na mesma linha de raciocínio, se as partes não pactuam juntas um acordo que beneficie a ambas, existe possibilidade que por inexperiência a pessoa aceite um contrato que não seja favorável a ela, o que pode gerar onerosidade excessiva, impedida pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo atual Código Civil. Isso é comum ocorrer em contratos bancários, a exemplo tem-se a seguinte ementa do Tribunal de Justiça de São Paulo:
CONTRATO. EMPRÉSTIMO. JUROS. LIMITE. TARIFAS BANCÁRIAS. SEGURO. TARIFA DE CADASTRO. [...] 4. Nos termos do REsp 1.578.553, julgado sob o rito dos recursos repetitivos, as tarifas de avaliação de bem e de registro de contrato são válidas, mas é abusiva a cobrança, se não houver efetiva prestação do serviço de avaliação e de registro. Além disso, também é abusiva a cobrança se resultar em onerosidade excessiva. 5. As financeiras podem incluir seguro em seus contratos, mas devem conceder ao consumidor oportunidade de optar por aderir ou não a esse negócio. E não só. O consumidor também deve poder escolher a seguradora de seu interesse, não podendo ser compelido a contratar com a seguradora previamente estipulada pelo financiador. Entendimento sedimentado no REsp 1.639.320- SP, tema 972. 5. No caso, o autor não pôde escolher se aderia ou não ao seguro. Venda casada configurada. 6. No caso, apesar de não haver indícios de existência de prévio relacionamento entre as partes, o valor exigido para simples cadastro se apresenta abusivo. (TJ-SP - AC: 1010857-94.2019.8.26.0011, Relator: Melo Colombi, Data de Julgamento: 02/07/2020, 14ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/07/2020).
Fica evidente a interferência estatal na esfera privada para garantir a dignidade do polo mais “fraco” da relação, impedindo abusos, por isso não há como afirmar que, de fato, o contrato faz lei entre as partes como era comum antes da constitucionalização do direito civil.
Ressalta-se que a função social apenas limita, não encerra a liberdade contratual nem a autonomia privada, ela é um instrumento que coloca os interesses sociais acima da vontade do indivíduo, o que promove mais equilíbrio nos acordos sem que isso signifique a anulação da pessoa humana, assim, a força obrigatória dos contratos continua existindo, entretanto na medida em que não desrespeite a justiça social assegurada pelo Estado Democrático de Direito brasileiro.
5. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA FÉ OBJETIVA COMO ELEMENTOS DE COMUNICAÇÃO DO DIREITO CIVIL COM OS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE, SOLIDARIEDADE E DIGNIDADE HUMANA
A função social do contrato é uma cláusula geral presente nos artigos 421 e 2035, parágrafo único, do Código Civil de 2002. O primeiro tem a seguinte disposição: “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato” (BRASIL, 2002), já o segundo disserta: “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos” (BRASIL, 2002).
Como dito anteriormente, a liberdade contratual é a possibilidade de os indivíduos firmarem acordos jurídicos estabelecendo o conteúdo de suas obrigações e, em consonância com a autonomia privada, possui limites de ordem pública para evitar abuso de direito entre a parte mais “forte” e a mais “fraca” na relação contratual.
Nesse sentido, em consonância com as exposições de Flávio Tartuce (2007), tal dispositivo leva ao entendimento de que os contratos passam a ser interpretados em conformidade com o meio social em que está inserido, inviabilizando a possibilidade de vantagem abusiva de uma das partes, que provocaria “perda”, ou onerosidade excessiva, a uma das pessoas envolvidas no negócio, promovendo desequilíbrio na relação e enriquecimento sem causa, o que é proibido pela codificação, de acordo com os artigos 884 e 886.
Além disso, conforme expõe Teresa Arruda Alvim (2005, p. 64 apud LEONEL 2007, p. 38) “a função social dos contratos significa que estes devem desempenhar papel na sociedade, representando um meio de negociação sadia de seus interesses e não uma forma de opressão”. Desse modo, a função social do contrato, está intimamente relacionada com o princípio constitucional de solidariedade, ao objetivo de justiça social e ao Direito Fundamental de igualdade presente no caput do artigo 5º da constituição federal.
Nesse diapasão, é plausível pontuar que no âmbito judiciário não mais se pauta apenas sobre a realização ou não da obrigação contratada, agora “atribui-se ao juiz o poder de avaliar se a forma de cumprimento da prestação atendeu às expectativas legítimas do outro contratante”, conforme preceitua Carlos Nelson Konder (2016, p. 41), ou seja, o magistrado pode decidir acerca da execução do contrato levando em consideração a relação de confiança construída entre as partes.
Assim, há decisões judiciais a serem analisadas, para situar na prática a aplicação da função social do contrato, como na apelação nº 0045662-55.2022.8.16.0014, do Tribunal de Justiça do Paraná, originado em processo da 5ª Vara Cível da comarca de Londrina, que tem por ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO PESSOAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO. [..] RECURSO DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA RÉ. RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PACTA SUNT SERVANDA EM RAZÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE ADESÃO E ONEROSIDADE EXCESSIVA. POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO TERMO EM DISCUSSÃO. ABUSIVIDADES VERIFICADAS. JUROS REMUNERATÓRIOS. DEFESA DA FINANCEIRA PELA MANUTENÇÃO DAS TAXAS PACTUADAS. IMPERTINÊNCIA. TAXAS CONTRATADAS QUE SUPERAM EM MUITO A TAXA MÉDIA DE MERCADO PARA OPERAÇÕES SIMILARES. ABUSIVIDADE VERIFICADA QUE IMPÕE A LIMITAÇÃO PELA TAXA MÉDIA DO BACEN. SÚMULA 530 DO STJ. RESTITUIÇÃO DO INDÉBITO. POSSIBILIDADE NA FORMA SIMPLES. ART. 876 DO CC. [...] (TJPR - 13ª Câmara Cível - 0045662-55.2022.8.16.0014 - Londrina - Rel.: Desembargadora Rosana Andrigetto de Carvalho – data de julgamento: 21.07.2023).
O caso em questão versa sobre ação de revisão de 15 (quinze) contratos de empréstimos celebrados entre as partes, em que os juros cobrados pela contratada chegavam à casa de 987,22% ao ano. A autora ajuizou a ação para obter a revisão dos juros que estavam sendo cobrados por não conseguir suportá-los e obteve êxito na sentença de primeira instância, da qual a ré apelou.
A instituição financeira sustentou em instância recursal que os contratos firmados entre as partes são perfeitamente válidos, pelo fato de os empréstimos serem destinados a pessoas físicas negativadas e que não haveria razão para que se procedesse qualquer revisão, devendo prevalecer a livre vontade das partes e o princípio da boa-fé objetiva.
Contudo, no relatório a desembargadora foi enfática ao versar que o pacta sunt servanda deve prevalecer, via de regra, por ser a base da sustentação do princípio da segurança jurídica, “no entanto, esse princípio é passível de mitigação, estando sua aplicação prática condicionada a outros fatores, como a função social, as regras que beneficiam o aderente nos contratos de adesão e a onerosidade excessiva” (TJPR, on-line).
Ainda seguindo a análise do voto da relatora, destaca-se que pelo entendimento dela, não importa qual a legislação aplicável ao caso concreto, “se Código de Defesa do Consumidor ou as regras editadas pelo Conselho Monetário Nacional e Bacen, visto que o Poder Judiciário sempre poderá adequar as cláusulas contratuais, com base na função social do contrato e na boa-fé” (TJPR, on-line).
Verifica-se, portanto, que a desembargadora levou em consideração a relação de confiança que havia se estabelecido entre os pactuantes para decidir pela revisão dos contratos, tendo em vista que o contratante vulnerável esperava apenas um empréstimo em condições que conseguisse pagar sem colocar em risco sua subsistência e de sua família e não que fosse ter que suportar extrema oneração em dívidas, como estava acontecendo na prática.
Como é percebido, fica evidente que o pacta sunt servanda pode ser mitigado quando presente o direito de solidariedade, bem como, o direito fundamental à igualdade e nota-se que a função social do contrato é a porta de entrada para a aplicação, uma vez que possibilitou a comunicação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, impedindo que houvesse opressão da parte mais “forte” (Instituição Financeira) sobre mais “fraca” (o cliente contratante) e ela fosse prejudicada. Assim também entende Tartuce (2007, p. 78): “O sistema de cláusulas gerais, aberto por excelência, possibilita essa comunicabilidade, ao contrário do sistema adotado pela codificação passada, que era hermético, fechado.”
Outras situações reais a serem objeto de estudo são a do Recurso Especial nº 1.568.244/ RJ e 1.715.798/RS que após o julgamento em conjunto com outros recursos se tornaram, respectivamente, os temas repetitivos 952 e 1016 do STJ. Abaixo destaca-se as teses:
Tese firmada no Resp. 1.568.244/RJ:
Para os fins do art. 1.040 do CPC/2015: O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso. (STJ. Recurso Especial nº 1.715.798/RJ. Relator (a): Ministro Ricardo Villas Boas Cueva. Data de julgamento: 14/12/2016)
Tese firmada no Resp. 1.715.798/RS:
(a) Aplicabilidade das teses firmadas no Tema 952/STJ aos planos coletivos, ressalvando-se, quanto às entidades de autogestão, a inaplicabilidade do CDC; (b) A melhor interpretação do enunciado normativo do art. 3°, II, da Resolução n. 63/2003, da ANS, é aquela que observa o sentido matemático da expressão ‘variação acumulada’, referente ao aumento real de preço verificado em cada intervalo, devendo-se aplicar, para sua apuração, a respectiva fórmula matemática, estando incorreta a simples soma aritmética de percentuais de reajuste ou o cálculo de média dos percentuais aplicados em todas as faixas etárias. (STJ. Recurso Especial nº 1.715.798/RS. Relator: Ministro Paulo Tarso Severino. Data de julgamento: 23/03/2022)
Pelo exposto, fica nítido que os planos de saúde, seja individual ou coletivo, não podem aumentar arbitrariamente e excessivamente o valor das mensalidades em razão do avanço da faixa etária, prejudicando os interesses das pessoas idosas. Assim, mesmo havendo aumento excessivo por clausula contratual, tal elevação é passível de mitigação via judicial.
Nessa senda, importante mencionar que nas relações de consumo, a condição de vulnerabilidade é ainda maior quando se trata de pessoas idosas frente aos planos de saúde, pois diante da premente necessidade de continuar como beneficiário, acabam tendo que se sujeitar ao domínio das operadoras, que por vezes cobram valores abusivos, ou ter que cancelar o plano, ficando à mercê do sistema público de saúde, que muitas vezes se encontra sobrecarregado e deficitário.
Convém tornar explícito que no voto do ministro Nancy Andrighi no resp. 1.715.798/RS, ele enfatizou que a imposição de contribuições demasiadamente altas inviabiliza a preservação do vínculo do idoso, o colocando em situação de extrema desvantagem no mercado assistencial de saúde, levando em consideração a dificuldade em pagar o alto custo e a dificuldade de nova filiação em outro plano, por conta de sua idade, configurando:
[...] um flagrante desvio da finalidade da norma inserta no § 3ª do art. 15 do Estatuto do Idoso, bem como daquela do parágrafo único do art. 15 da Lei 9.656/1998, evidenciando a exploração da hipervulnerabilidade do idoso, a partir da transferência indevida do risco previamente assegurado, a caracterizar, por conseguinte, ofensa à boa-fé objetiva e à função social do contrato de plano de saúde. (STJ, 2022, on-line)
Como pode ser observado, prezou-se pela equidade, ante a situação econômica da pessoa idosa, que tende a ser menor ao se aposentar do que quando era jovem e contribuía assiduamente. Sendo assim, o plano de saúde não pode contrariar o bom senso e aumentar de forma demasiada a mensalidade para renovação contratual em função da idade.
Da análise dos recursos apresentados, também é possível observar mais uma vez a presença da função social do contrato sendo utilizada por membros do judiciário no sentido de garantir a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro, segundo consta no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal. Percebe-se igualmente o cunho de solidariedade nesse princípio contratual, uma vez que as partes contratantes devem agir em reciprocidade de respeito ao bem estar social e equilíbrio contratual.
Além disso, fica nítida a presença da boa-fé objetiva tanto neste caso quanto no anterior e se não tivesse sido corrigido o desrespeito a ela, poderia ocorrer situações não apenas de onerosidade excessiva, como também de injustiça nos contratos, visto que no primeiro processo o contratante comprometeria grande parte de seu salário, prejudicando a própria dignidade da pessoa, e se não houvesse as jurisprudências do STJ nos temas 952 e 1016, os idosos que tanto contribuíram regularmente com o plano de saúde durante a juventude ficariam sem a possibilidade de continuar sendo beneficiários pelo simples fato de ter alcançado a terceira idade, o que é uma nítida situação de preconceito, menosprezo, e abuso de direito, conforme exposto no artigo 187 do Código Civil de 2002, ou seja, um caso de violação ao direito fundamental de igualdade e à dignidade humana. Nesse sentido, também conclui Teresa Negreiros (2003, p. 117 apud TARTUCE, 2022, p. 100): “a fundamentação do princípio da boa-fé assenta na cláusula geral de tutela da pessoa humana.”
6.CONCLUSÃO
A análise doutrinária permitiu entender que os direitos fundamentais possuem eficácia horizontal, e isso significa que diferente de outrora, tais direitos não são tidos apenas contra abusos estatais, nas relações verticais, pelo contrário, eles se aplicam nas relações entre particulares, o que pôde ser percebido no direito contratual.
A partir do caso concreto da Apelação cível nº 1010857-94.2019.8.26.0011 do Tribunal de Justiça de São Paulo em que houve a mitigação do pacta sunt servanda e limitação à liberdade contratual pelo fato de o consumidor ter sido levado a aderir uma coisa que não era sua vontade e nem lhe foi dado a oportunidade de escolha, o seguro de empréstimo, percebe-se de maneira clara a substituição da autonomia da vontade pela privada, haja vista que em outrora pelo fato de o consumidor ter dito “sim” e aderido ao contrato, teria que cumpri-lo, já sobre égide da autonomia privada, esse tipo de contrato passa a ser revisto levando em consideração o desejo da pessoa no momento que efetuou a negociação.
Já no que se refere à segurança jurídica e cumprimento da obrigação, pelos casos analisados, foi possível observar que em todos o que houve foi apenas revisão de clausulas abusivas, para garantir a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, os pactos feitos continuam vinculando e devendo ser integralmente cumpridos, desde que firmados com respeito a função social do contrato.
Por fim, percebe-se que no direito civil contemporâneo os direitos existenciais ganharam força, há uma clara diferença do código civil de 2002 em relação ao de 1916, uma vez que o mais antigo continha um caráter liberal que o distanciava dos problemas sociais, sob égide da autonomia da vontade e plena liberdade contratual, já o atual sofre influxos da constituição e impõe limites a essa liberdade, a partir das cláusulas gerais de boa-fé objetiva e função social do contrato, o que significa que o Estado pode interferir no conteúdo do contrato para garantir a equidade, impedir abusos de direito, como a onerosidade excessiva da parte mais “fraca”, que é prejudicial à sua dignidade.
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